VALE DO CÔA – ARTE RUPESTRE – CASTELO MELHOR
No Orgal, vestígios de uma Villa Romana. Alguns indícios levam-nos a supor ter sido esta terra de Castelo Melhor abrigo de Visigodos e Árabes. No morro do castelo estão enterrados mistérios que urge desvendar. Escavações arqueológicas poderão trazer à luz do dia não só vestígios pré-históricos como romanos, árabes e visigóticos. Na Rua dos Namorados, encravadas num muro de propriedade, algumas pedras gravadas com motivos fitomórficos e geométricos, poderão muito bem levar-nos até épocas muito recuadas, possivelmente coevas dos reinos Suevo ou Visigótico.
Mas passemos a algumas nótulas documentadas:Encontra-se esta freguesia na região ribacudana e como tal a sua história confunde-se com a de outras da mesma região.
Curiosamente, o próprio nome, ao compor-se de uma forma qualificativa, sugere-nos que a sua fundação terá sido posterior à de Castelo Bom. O seu território pertenceu ao longo do século XIII ao reino de Leão, passando apenas a fazer parte de Portugal após o Tratado de Alcanices. Os seus foros, datados de 1209, recebeu-os de Afonso IX de Leão. A crítica histórica tem vindo, no entanto, a pôr em causa esta data, argumentando que se está perante uma cópia dos de Castelo Rodrigo. Seja como for, recordemos que era prática corrente os monarcas darem a escolher aos povos o foral existente que quisessem. Atendendo a tudo isto, considera-se hoje que a fundação de Castelo Melhor ocorreu entre 1230 e 1298. De facto esta última data é a primeira referência a Castelo Melhor a merecer-nos confiança. Trata-se da confirmação dos seus foros por D. Dinis, em 12 de Junho de 1298.
A data da confirmação dos foros por D. Dinis deve ser no entanto apenas entendida como limite documental, uma vez que se sabe que Castelo Melhor passou à Coroa portuguesa, em 1292, como dote da Rainha D. Isabel, tendo na altura D. Dinis mandado reparar o castelo e repovoá-lo. Nos inícios do século seguinte, em 1321, num Rol das Igrejas, é apresentada como sendo uma simples aldeia de Castelo Rodrigo. Embora não se conheça qualquer documento a indicar esta anexação, a hipótese é plausível.
O facto de Afonso V,em 1449, confirmar a sua qualidade de vila, associando-a a Almendra, não deixa de revelar, na opinião de Duarte Nogueira, a sua insegurança face a Castelo Rodrigo. A partir de meados do século XV, a sua história confunde-se com a de Almendra, com a qual aliás forma um concelho que adopta, curiosamente, o nome destas duas freguesias. No reinado de D. João III possuía 32 moradores, como atesta o recenseamento de 1527. Esta freguesia tem vindo desde esta época a registar um crescimento populacional contínuo, com excepção das últimas décadas. (Adaptado da obra “Por Terras do concelho de Foz Côa – Susídios para a sua História – Estudo e Inventário do seu Património”, de A.N. Sá Coixão e António A. R. Trabulo, editado pela Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2ª edição – 1999).
Bibliografia
António N. Sá Coixão e António R. Trabulo, Por Terras do concelho de Foz Côa – Susídios para a sua História – Estudo e Inventário do seu Património, Vila Nova de Foz Côa, Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2ª edição – 1999.
http://www1.ci.uc.pt/fozcoa/gravuras.html#oque
Por que é que as gravuras são tão importantes?
A imprensa divulgou abundantemente a importância patrimonial e científica das gravuras de Foz Côa. Contudo foi pouco explicada a razão de ser dessa importância.O seu valor patrimonial é fácil de explicar. Até à década de 80, a arte do Paleolítico Superior só estava representada no território nacional pelas pinturas da gruta do Escoural (Montemor-o-Novo). Deverá esperar-se por 1981, para que seja identificada a primeira estação de arte rupestre paleolítica ao ar livre, em Mazouco (Freixo de Espada-à-Cinta), a cerca de 25 km do vale do Côa. Trata-se de uma gravura representando um cavalo com cerca de 62 cm de comprimento. O complexo do vale do Côa é, portanto, a terceira estação de arte rupestre paleolítica conhecida em Portugal. Não estamos perante uma rocha com uma gravura isolada, mas sim centenas, talvez milhares, de gravuras distribuídas ao longo de um vale.
280 grutas e só 5 estações ao ar livre
A importância do achado transcende o território nacional, porque se é verdade que conhecemos hoje cerca de 280 grutas com pinturas paleolíticas na Europa Ocidental, também é verdade que só foram identificadas até hoje quatro outras estações de arte rupestre paleolítica ao ar livre no mundo inteiro: Mazouco, que já citámos, Fornols-Haut (Campôme, França), Domingo Garcia (Segóvia, Espanha) e Siega Verde (Ciudad Rodrigo, Espanha), nas margens do Rio Águeda, a poucas dezenas de quilómetros do Vale do Côa. O que existe no Côa não é, portanto, somente raro, é, de facto, quase único.
Explicar o valor científico das gravuras obriga-nos a fazer um rápido apanhado de mais de um século de investigação da arte paleolítica. Quando nasce a Pré-história como disciplina científica no século passado, a imagem que se tem do homem pré-histórico é a de um selvagem, vivendo próximo do estado “animal”. Desde meados do século passado, foram encontradas em camadas arqueológicas datadas do Paleolítico objectos com interesse artístico: estatuetas femininas e representando animais, gravuras sobre plaquinhas, de pedra ou osso, objectos de carácter utilitário decorados… De “semianimais”, passou-se a considerar os homens do Paleolítico como seres capazes de produzir algo de estético. É em 1879 que Marcelino de Sautuola descobre as pinturas da Gruta de Altamira, em Espanha, atribuindo-as ao período paleolítico. A ideia encontra então uma grande resistência, à qual a grande beleza estética das pinturas não é estranha. Continuavam vivos os preconceitos da “bestialidade” do homem pré-histórico.Da “arte pela arte” à “arte mágica”
É graças à conjugação do amadurecimento das mentalidades e da multiplicação das descobertas de grutas “pintadas” que fica assente, no início do nosso século, que a arte parietal é de cronologia paleolítica. Considerou-se então a arte paleolítica como “arte pela arte”, ou seja, tendo uma função puramente estética. Recorrendo à Antropologia e ao comparativismo etnográfico, certos autores dão uma nova dimensão à arte paleolítica: a função ritual e mágica, da qual a arte seria o vestígio material. Segundo essa interpretação, o homem representava os animais com que se alimentava, num ritual mágico que tinha por objectivo propiciar a caça e a reprodução dos próprios animais.
Nos anos 60, um investigador francês, André Leroi-Gourhan, revoluciona o conhecimento da arte paleolítica. Analisando estatisticamente a disposição dos motivos na gruta, considerada pela primeira vez como um todo, ele descobre que existe uma organização espacial, quase invariável de uma gruta para outra, dos temas de ornamentação.A gruta é um santuário… mas também existem santuários ao ar livre
Uma análise temática de cada unidade topográfica da gruta permitiu a Leroi-Gourhan verificar que a temática da arte paleolítica é binária, baseando-se na associação de temas masculinos e femininos. A recorrência dessa associação deixa adivinhar um sistema simbólico complexo, impossível de decifrar actualmente. Ele chega então à conclusão de que a gruta é um autêntico santuário, associado a práticas “religiosas”, das quais a arte paleolítica é o vestígio material.
Fica então com a ideia de que a arte paleolítica era um arte cavernícola.
A descoberta no vale do Côa de centenas, porventura milhares de gravuras, pemite pensar hoje que a arte paleolítica terá tido inicialmente uma maior representação ao ar livre. Mais expostas aos fenómenos naturais de degradação, as figurações ao ar livre estão hoje menos representadas do que as pinturas e gravuras em grutas. Em regiões como o vale do Côa, onde as condições naturais foram mais favoráveis, a regra geral não se aplicou. Por outro lado, a distribuição das gravuras ao longo do rio numa extensão de quase duas dezenas de quilómetros permite-nos pensar que estamos perante um autêntico santuário ao ar livre. A exposição preferencial das gravuras a nascente e a associação dos animais ao rio, sugere uma veneração das águas do rio, que seria sagrado.
Quando é que as gravuras foram feitas ?
Foi muito discutida a atribuição das gravuras do Vale do Côa ao período Paleolítico. É necessário por isso esclarecermos como é que se chegou a esta conclusão. O Paleolítico superior ou “Idade da Rena” é o período que se estende desde cerca de 38 000 a. C. até 9 000 a. C., em que o Homo sapiens sapiens, o nosso semelhante, apareceu na Europa. Dentro desse longo período distinguem-se várias culturas, identificáveis pelos vestígios materiais que deixaram. A cultura Chatelperronense acaba por volta de 28 000 a. C., momento quando começa o Gravetense, que dura até cerca de 18 000 a. C. A esse momento acaba também a cultura Aurignacense, que começa por volta de 32 000 a.C.. A Solutrense situa-se entre 18 000 a. C. e 15 000 a.C. e a Magdalenense dura de 15 000 a. C. a 9 000 a. C. As gravuras mais antigas conhecidas no vale do Côa (até Março de 95) eram identificáveis com o Solutrense médio antigo, ou seja, teriam sido feitas há mais ou menos 20 000 anos.A datação por métodos estilísticos
Baseando-se em parâmetros estilísticos e estratigráficos, André Leroi Gourhan elaborou, nos anos 60, uma cronologia dos diferentes estilos da arte paleolítica. Há poucos anos atrás, a sua classificação foi, de um modo geral, confirmada pela datação directa de pinturas das grutas, através da análise química dos pigmentos negros das pinturas de origem orgânica (como o carvão de madeira). Ora, as gravuras mais antigas do vale do Côa numa primeira análise integram-se no estilo II de Leroi-Gourhan, que ele data do Solutrense Médio Antigo.Em meados de 1995, a EDP encomendou datações directas, pelo métodos Cloro 36 e de micro-erosão, aos cientistas Robert Bednarik, Alan Watchmann, Ronald Dorn e Fred Phillips, assim como a dois laboratórios americanos: Lawrence Livermore e Beta Analitic.Os resultados forneceram datações divergentes entre si, quase todas pós-paleolíticas, o que levou a pôr em causa que as gravuras do vale do Côa tivessem realmente sidos realizadas no Paleolítico.Os limites dos métodos “exactos” Essas datações foram no entanto rapidamente criticadas pelos arqueólogos e por A. Monge Soares, do Laboratório de Isótopos Ambientais do Instituto Tecnológico e Nuclear. Segundo ele, Bednarik, que utiliza o método de micro-erosão, não calibrou os parâmetros localmente. Quanto às datações obtidas por A. Watchman e R. Dorn, Monge Soares argumentou que só permitem afirmar que as gravuras são anteriores às datas que eles obtiveram. Essa crítica encontrou eco no Congresso Internacional de Arte Rupestre que decorreu em meados do ano de 1995 em Turin, onde os especialistas confirmaram a atribuição da arte do Côa ao período Paleolítico. Os métodos utilizados por esses cientistas ainda estão na pré-história da sua utilização, e só a longo prazo se tornarão fiáveis. Hoje em dia, o único método de datação capaz de fornecer resultados fiáveis, será o método radiocarbono, utilizado há várias décadas, mas que, em contrapartida, não permite a datação directa das gravuras, a não ser que elas tenham sido cobertas, imediatamente após a sua feitura, por pigmentos com matéria orgânica. A sua aplicação implica um programa coerente de escavações arqueológicas em locais de habitat ou junto aos painéis gravados, que permitirá, com certeza, a descoberta de restos de matéria orgânica, condição sine qua non para datação por este método. O projecto da barragem no vale do Côa, estando hoje definitivamente cancelado, permitirá a aplicação desse método.O autor agradece a Domingos J. Cruz e Joaquim R. Carvalho, pela sua leitura do texto e sugestões. | |
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